* Reportagem vencedora do prêmio de Melhor Reportagem em Texto do 26º SET UNIVERSITÁRIO da PUCRS.
Marcado pelas constantes violações de direitos humanos contra travestis e homossexuais, o Presídio Central de Porto Alegre se converteu em um lugar onde o respeito à diversidade começa a se fazer presente.
O que Beatriz mais ouvia quando chegou ao velho e problemático Presídio Central, em 2001, era que deveria usar roupas de homem. Ela foi presa com outras três companheiras travestis, acusadas de executarem um sequestro relâmpago. Lá, nos prédios que ocupam um quarteirão inteiro de cerca de 10 hectares e parecem agonizar em uma zona densamente habitada de Porto Alegre, não havia espaço para o diferente. Como de praxe, suas perucas foram arrancadas, os restos de cabelos compridos cortados e as vestes femininas entregues à família, dando lugar a uma figura andrógina: roupas de homem, corpo de mulher.
Independentemente do crime que cometiam, ao chegar ao presídio, todas as travestis eram encaminhadas para a ala dos “duques”, apelido dado aos presos que cometeram crimes sexuais, como estupro e pedofilia. Eram escravizadas e tratadas como uma mercadoria qualquer de propriedade do “plantão”, que ocupa a função de chefe da galeria e serve de ponte entre a polícia e os outros prisioneiros. Na primeira noite, Beatriz foi vendida cinco vezes, de um detento para outro. Foi trocada por uma televisão, por um rádio, dinheiro e drogas. Servia de objeto sexual de quem a possuísse.
Obrigavam as travestis a fazer coisas que não queriam. Eram maltratadas pelos colegas de cárcere e pela polícia. Levavam choques elétricos dos outros presos na língua caso não respeitassem os mais perigosos. Ficavam no fundo da galeria, que tinha o simbólico apelido de pantanal, por ser um lugar escuro e úmido. A pouca comida distribuída pelos agentes penitenciários nem sempre chegava ali, que era onde abrigavam também os doentes.
Não havia cama para todos, então era preciso que alguns dormissem em duplas ou trios nos beliches de cimento. Na primeira cela em que Beatriz ficou, 21 pessoas dividiam seis leitos em um espaço de cerca de seis por quatro metros. À noite, a maioria deitava no chão e aguentava um calor insuportável.
“Eu pensei que tinha ido pro inferno e não voltaria mais. Aquilo não era uma vida, mas um tormento. Na cadeia, se tu é travesti, tu é lixo”, desabafou Beatriz. Os presos não bebiam no mesmo copo nem usavam os mesmos talheres que os gays. Diziam que não queriam ter contato com o pênis dos outros indiretamente.
Quando Fabíola chegou ao Presídio Central, oito anos depois de Beatriz, não imaginava o que acontecia atrás das grades. Rapidamente iniciou um relacionamento com outro preso. “Tudo aqui era estranho e eu pensava que ele iria me proteger”, conta. Mas a impressão de acolhimento não passou disso. Ele a agredia constantemente, e o chefe da galeria não permitia separação.
O homem sentia tanto ciúme que não a deixava sair ao pátio para tomar sol e a obrigava a ficar trancada na parte de baixo do beliche durante o dia todo. Sempre que o desafiava para ter liberdade, era agredida. O problema foi resolvido apenas quando a irmã de Fabíola percebeu, no dia de visitas, que algo estava diferente e acionou a corregedoria da instituição. “Tentei esconder as marcas com o cabelo, mas ela viu que eu estava com o rosto marcado, cortado e com o olho roxo. Eu não queria porque me apaixonei por ele, pedi pra não fazer, mas ela pensou que eu estava sofrendo muito e achou que poderiam me matar”, conta.
UMA SOLUÇÃO EFICAZ
Atendendo a um pedido das travestis presas no Presídio Central, a ONG Igualdade, que realiza um trabalho de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis no local, pediu à direção da casa que uma das alas fosse reservada para gays, travestis e seus companheiros.
Após alguns meses de negociação, em abril de 2012 a solicitação foi aceita. De início, alocou-se 36 pessoas no espaço. A primeira iniciativa do tipo aconteceu em Minas Gerais, em 2009. O que no começo era visto com curiosidade no meio prisional, hoje é reproduzido por outra casa de detenção, em Osório, no Rio Grande do Sul.
O começo não foi fácil. Todas tinham muito medo de que a reclamação se voltasse contra elas próprias ou que sofressem alguma represália da polícia e dos colegas de cárcere. “Pensamos assim: vamos lutar, mas se acontecer algo, alguém vai ter que vir aqui e fazer uma matéria sobre isso. Alguém vai ter que ficar sabendo. Até que o chefe da outra galeria mandou baterem na Nalanda (que encabeçava o processo) com um pedaço de ferro. Depois que isso aconteceu e reclamamos, a mudança foi bem rápida”, lembra. Com o tempo e a exposição gerada na mídia, as travestis se sentiram mais seguras para ocupar o espaço. Fabíola, que na época ajudou Nalanda, hoje em liberdade, se tornou a representante das travestis na prisão. O envolvimento da ONG foi decisivo na argumentação com a polícia.
Em julho de 2013, a galeria 3 do prédio H era ocupada por 23 pessoas. A aparência é melhor do que a do resto da prisão. Móbiles de tecido foram costurados pelos presos e enfeitam o teto. Diferente das outras alas, em que os odores de podridão imperam, pode-se sentir o aroma dos produtos de limpeza, usados em um esforço hercúleo para transformar o ambiente, degradante por si só, em algo mais humano. O local é tão diferente que até os policiais se impressionam. Desenhos de São Jorge colorem as monótonas paredes beges. Um relógio de parede preto marca o tempo. Tempo que muitas presas já desistiram de contar.
Os números das celas receberam uma moldura feita com papel colorido. No interior, guardam-se os pertences de cada um em sacos plásticos enfileirados pelos cantos e embaixo das camas. As cobertas são grossas e rústicas. Alguns tapetes artesanais dão um aspecto mais aconchegante ao recinto. Suspensa por uma atadura, uma cuia de chimarrão vira um vaso para uma planta sem flores. A vassoura tem o cabo quebrado ao meio, mas consertado com uma fita.
No cômodo que serve como banheiro, há apenas um buraco no chão revestido com uma estrutura de metal e um chuveiro. A porta do banheiro é improvisada com uma pesada manta presa a uma corda, que faz as vezes de cortina. No alto da entrada, do lado de fora, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, desenhada por Fabíola.
Nas camas de cimento há furos, onde se escondem os percevejos que incomodam no verão. Não é raro as pessoas aparecerem com marcas pelo corpo causadas pelas picadas. Se apenas os insetos aparecessem, o mal não seria tão grande, mas a visita de roedores também acontece.
No começo do processo de implantação da ala exclusiva, as travestis não saíam para o pátio do presídio por medo de serem agredidas pelos outros confinados. Hoje já transitam com alguma liberdade, mas continuam com receio. Trabalhar e estudar é algo ainda não garantido a esse grupo, ao contrário dos outros. Não que haja algum impedimento do sistema para isso. Elas podem, se quiserem, mas a relação conflituosa com o restante dos presos desestimula. Para driblar a situação, fazem bruxas de pano, fuxico, bonecos de retalho e pufes com restos de tecido, que são vendidos fora do presídio pela Igualdade. O dinheiro acaba revertido para as presas.
MOLDANDO O FEMININO
Alguns produtos passaram a fazer parte da rotina das presidiárias apenas com a chegada da ONG. Antes disso, ter acesso a qualquer coisa tipicamente feminina, mesmo as mais simples, como roupas íntimas, era muito difícil. “Nós mesmas fazíamos conjuntinhos de calcinha e sutiã com as camisetas que sobravam”, revela. “Inventávamos bastante. Sempre tem uma amiga que costura na galeria.”
Fabíola gosta de se arrumar todos os dias. Quando acorda, toma banho, passa lápis e sombra no olho e base na pele. Suas sobrancelhas são desenhadas perfeitamente, e o cabelo cacheado permanece sempre bem arrumado. “Acontece tanta coisa na cadeia, não quero que me vejam feia”, explica. Ela tem poucas maquiagens. Pedaços de estojos com pós já gastos, alguns lápis de olho, esmalte, rímel e batons guardados dentro de uma pequena pochete. O estoque diminui com velocidade. “Muitas foram viajar e levaram o que a gente tinha”, esclarece.
No presídio se usa o termo viajar para dizer que transferiram o preso para outra casa. Na maioria das vezes, dizem que “foi viajado”, já que nem sempre pode-se escolher ficar. O trânsito de detentos, aliás, é grande. Devido a esses trânsitos que Fabíola e Rodrigo se casaram. A palavra casar também tem significado específico na prisão. Lá, não há espaço para namoricos. Ou é casado, ou não.
Há dois meses, dividem a rotina de casal. Preferem dormir juntinhos. O clima da cela é úmido, o concreto do leito gela no inverno e um aquece o outro. Não precisa esforço para ficar próximo, já que a cama é de solteiro. No verão, a questão se inverte. O calor torna impossível ficar grudado, como se espera de um casal apaixonado. Sexo, somente debaixo do chuveiro ou bem rápido se ninguém estiver na cela, para que depois vá cada um para o seu lugar. Na cela de Fabíola e Rodrigo, estão alojadas mais sete pessoas.
Quando querem privacidade — como se isso fosse possível em um presídio —, penduram alguns lençóis no entorno dos beliches. “Fica bem bonitinho, até”, comenta Fabíola, que com um muxoxo corrige: “Bonitinho aqui dentro desse lugar. Na rua a gente não quer nem lembrar disso”. À cabana improvisada, dão o nome de “quieto”. Não à toa, já que é tudo muito discreto e os barulhos, abafados. Quando alguém está nele, ninguém interrompe, ninguém incomoda. É o momento de respeito ao amor dos casais.
Para conquistar a amada, Rodrigo lava roupa, limpa e cozinha. “De umas semanas pra cá, que anda fazendo uns friozinhos, eu fico meio sem vergonha pra cima dele, eu fico mais deitada. Mas ele diz que faz porque gosta de mim”, confessa Fabíola.
Para ocupar a ala, os homens devem ter algum relacionamento com as travestis ou se reconhecer como homossexual. Fingir para ficar em um lugar melhor, já que a lotação do local é menor e o ambiente, mais organizado, não funciona. Antes de ser aceita no espaço, a pessoa é observada por alguns dias pelos outros presos. Marido de travesti deve dar um beijo em uma demonstração pública de afeto, exposto a todos bem no meio do pátio. Depois disso, caso volte, por algum motivo, a conviver com os outros presos, pode ser vítima de discriminação e sofrer a mesma violência que os gays sofriam. O controle rígido faz com que se garanta um lugar seguro e livre de preconceituosos.
A visão comum é a de que em um presídio não se pode ter mais do que as próprias roupas, mas, por mais estranho que possa parecer, no cárcere entra de quase tudo, já que o Estado não supre as necessidades básicas. Comida, dinheiro e roupas são alguns exemplos de coisas trazidas pelas famílias e entregues nos dias de visita. “A gente precisa comprar material de limpeza, comida, tomate, tempero, cebola”, conta Fabíola.
Apesar de desenhar santos católicos, Fabíola, assim como a maior parte das travestis presas, segue a Nação, religião de origem afro-brasileira. Mesmo com a determinação da Lei de Execução Penal, de que no ambiente prisional deve ser garantido o direito de expressão da religião e local apropriado para isso, o único espaço existente é uma capela católica. Além disso, com bastante assiduidade, fiéis evangélicos vão até o Central para realizar cultos. Fabíola já tentou frequentar, mas prefere não participar por não se sentir acolhida. “Esses dias eu quase fui num culto. Desisti porque um pastor veio me dizer que talvez Jesus pudesse me mudar. Só que Jesus não quer o meu corpo, ele quer a minha alma. Se a minha alma e meu espírito estiverem limpos, nada mais interessa. O meu corpo, do pó veio e para o pó vai”, encerra.
HORMÔNIOS E SILICONE
Na rua, muitas travestis veem nos comprimidos ou injeções de hormônios femininos uma solução para parecer mais mulher. Ao entrar na prisão, conseguir a substância não é tão fácil. Fabíola tomou quatro injeções de uma vez fora do presídio, duas em cada braço. Depois de um tempo, passou a usar os anticoncepcionais que a irmã tomava. Faz um ano que não toma mais. Da época, ficaram os seios mais avantajados, a diminuição do tamanho dos ombros, do gogó e a lembrança de quando a barba nem crescia mais e não era preciso tirá-la com pinça ou aparelho de barbear.
A assistente social do presídio Denise Lunardini esclarece que já se iniciaram mobilizações para que as travestis possam ter acesso aos medicamentos. Por causa das mudanças de administração no presídio e grande sobrecarga de trabalho, o assunto não foi mais tratado.
Uma questão que já entrou no imaginário popular das pessoas quando se fala das travestis é a aplicação de silicone no corpo. Como as próteses são caras, muitas aplicam silicone industrial usado para limpeza de turbinas de avião com seringas usadas em cavalos. Com o tempo, o produto pode se deslocar para outras áreas do corpo, como os pés. Hoje nenhuma das travestis presas possui silicone aplicado, mas já passaram outras por lá com a substância injetada de forma precária. Algumas reclamavam de dor e de que sentiam o produto andando pelo corpo. Nestes casos, pediam ajuda na enfermaria, mas os únicos procedimentos tomados era a aplicação de medicamentos para dor e para dormir. À Denise, as manifestações de problemas com o silicone das travestis nunca chegaram, o que é compreensível, sabendo-se que cada assistente social atende a uma população de cerca de 2 mil apenados.
SER MULHER ATÉ NO LADO RUIM
As travestis se espelham nas mulheres, mas não apenas no lado bom. Quanto mais próximas do que é considerado feminino na sociedade, mais se sentem realizadas. Mesmo que isso signifique ser oprimida, violentada e subjugada pelos homens. Assim como as mulheres encarceradas, a maioria delas entra na prisão por tráfico.
O assistente social e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS Guilherme Gomes se dedica a estudar as experiências sociais e a formação da identidade de gênero travesti no ambiente carcerário. Para ele, estas pessoas já são vulneráveis em termos sociais e têm a vulnerabilidade de gênero acentuada quando vão para o presídio. “A prisão não sustenta a diversidade de forma nenhuma”, conclui. Muitas das características que as travestis assumem no ambiente carcerário são parecidas com as experiências das mulheres fora da prisão. Em geral ocupam posições de subordinação, muitas vezes se responsabilizando pelo trabalho doméstico do lugar.
Um dúvida que frequentemente surge quando se fala de uma ala para travestis em um presídio masculino é se não seria melhor encaminhar estas pessoas para uma casa prisional feminina. A resposta de Guilherme é negativa. “Isso nao tornaria a situação mais fácil. As funcionárias não aceitariam ter que lidar com pessoas que têm um sexo biológico masculino dentro de um espaço feminino, eu já ouvi isso inclusive delas”, analisa. Muitas agentes penitenciárias acreditam que a presença de travestis tumultuaria a cadeia e colocaria as detentas em risco. Há temor com a possibilidade de uma presa ser estuprada por uma travesti ou que possa engravidá-la, como se existisse um instinto nelas que não pudesse ser controlado. Além disso, as travestis também não desejam ir para um presídio feminino pela impossibilidade de permanecerem com seus parceiros na cela.
A prisão é seletiva. No Brasil, várias pessoas cometem crimes, mas o sistema seleciona algumas para serem encarceradas. A classe social, o gênero e a etnia são elementos que não passam desapercebidos. “Podemos pensar as travestis também como parte deste grupo que acaba sendo neglicenciado pela sociedade. É um caráter histórico que define quais os lugares que elas merecem ocupar”, salienta Guilherme.
“Se você é jovem, negro, vive na periferia e tem baixíssima instrução, a chance de passar pelo sistema prisional é grande. Não é por acaso, existe toda uma questão social pra se levar em conta”, afirma o capitão Daniel Marobin, do Presídio Central.
O respeito por parte das outras pessoas é algo que não faz parte da vida de muitas travestis em liberdade. Entre as grades, em um canto escondido de uma instituição doente como o conceito de moralidade que impregna as ruas, se tornou possível, talvez pela primeira vez, ter dignidade com o aval do Estado. Discriminadas desde o momento em que expõe a sua identidade de gênero e renegadas a uma vida em que são escondidas do resto da sociedade, as travestis criaram uma micro-sociedade onde podem ser aceitas dentro do presídio. Beatriz, em liberdade desde 2006, ao lembrar do período que esteve presa, é taxativa: “Na prisão não se tem segurança, a gente não dorme, cochila”. Fabíola agora compara: “Já dá pra colocar a cabeça no travesseiro e dormir tranquila. Pelo menos por enquanto, temos que ver como as coisas ficam. Pra nós, isso aqui é um mundo. É um quadrado de cimento, mas é o nosso mundo”.